Queremos que a passagem dos oitocentos anos do carisma clariano a ser
comemorado em 2012 seja um marco para nossa família franciscana e clariana.
Gostaríamos de tornar Clara mais conhecida e fazer de sorte que ela pudesse
iluminar muitas vidas da Igreja e do mundo. Continuamos a oferecer aos nossos
leitores passagens do belo livro de Chiara Giovanna Cresmachi, “Chiara di
Assisi. Un silenzio che grida”. Desta vez, vamos acompanhar
aquilo que ocorreu em São Damião com a passagem do corpo morto de Francisco (p.
106-109).
1. Um pouco antes de morrer, Francisco havia mandado dizer a Clara que ela
haveria de vê-lo ainda uma vez. Tal profecia se realizou durante o translado do
esquife com o corpo de Francisco para a igreja de São Jorge, quando o cortejo
dos frades e do povo parou em São Damião. Verdade que foi um encontro um pouco
diferente do que aquele que ela teria querido esperar: Clara devia enxergar
para além da aparência, além dessa parede intransponível da morte. A
contemplação do corpo morto daquele que foi pai e guia de Clara e de suas irmãs
levou à descoberta dos estigmas, motivo de admiração e presságio da glória.
Para além dos sentimentos manifestados nesse momento, tomando distância do
triunfalismo e ostentação a respeito de fenômenos místicos, Clara nunca aludirá
a essa identificação de Francisco com o Cristo. Celano diz que as irmãs puderam
ver o corpo de Francisco através da janelinha pela qual elas recebiam a
Eucaristia (1Cel 116), enquanto que
através de outra coletânea de elementos históricos fomos informados que os
frades tomaram o santo corpo da maca e o mantiveram entre os braços perto da
janela por grande espaço de tempo (cf. Compilação
de Assis, n. 13). Disso se depreende como era delicada a amorosa fraternidade por parte
dos irmãos, sabedores que eram do quanto Francisco fora importante para aquelas
mulheres.
2. Celano, o biógrafo oficial, quando
descreve a passagem por São Damião, no momento em que os despojos estavam sendo
levados para dentro dos muros de Assis, se compraz em usar de retórica ao
descrever o pranto e as lamentações de Clara e de suas irmãs. Tudo leva a crer
que se trata de uma página literária em que elas são apresentadas com as
características das carpideiras bíblicas. Importante que fique claro, no
entanto, que esse episódio coloca em realce o relacionamento de Francisco com
as Senhoras Pobres, tão denso a ponto de reclamar uma parada do cortejo fúnebre
com as autoridades civis e o povo. Deve-se dizer que o acontecido se impunha
como evidente em si, devido ao fato de que aquelas mulheres pertenciam à fraternitas de Francisco. Mesmo se deixarmos de
lado a dramatização literária, aquilo que o biógrafo afirma é verdadeiro: à
sororidade de Clara passa a faltar o único sustento humano. Às irmãs é dado
apenas o conforto de venerar aquele corpo, que tinha os sinais de nossa
salvação “e ver assim, não somente o único penhor seguro da glória do irmão e
pai, mas também a representação viva do Crucificado pobre, o único Bem das irmãs na terra”.
3. “Está aí a mensagem silenciosa e
eloquente que Francisco deixa para as irmãs e que Clara compreende de modo
muito profundo: vossa única posse é Jesus Cristo, por vós morto e ressuscitado,
com ele, nele e por ele nada haverá de vos faltar, assim não havereis de temer
adversidades e contrariedades. Para além do sofrimento e da incerteza com
relação aos que viriam sem Francisco, a mãe das irmãs
pobres, sabe com firme esperança que nada poderá fazer com que ela vacile,
porque ganhou nova força por meio da passagem pascal de Francisco vivida um
pouco antes com sua morte. Nisto consistia sua consolação, sua força e sua
alegria”. Clara está disposta a aceitar sacrifício, desprezo, incompreensão,
aversão para seguir suas pegadas, naquela pobreza-humildade que o Espirito lhe
havia indicado através da palavra e do exemplo do Poverello. Clara se tornou,
por assim dizer, “carne de sua carne”. A plantinha de Francisco nada
sabe a respeito dos caminhos que haverá de percorrer sozinha. Basta-lhe viver
dia após dia com a energia que, apesar de suas frágeis forças físicas, lhe é
dada pela gratuita liberalidade do sumo Doador. Nesta profunda solidão, que se
tornou mais amena pela proximidade e comunhão com as irmãs, Clara experimenta
sempre mais a amorosa ternura do Pai celeste que delas se ocupa como uma mãe se
ocupa de seu filho.
4. Trata-se de uma experiência que
cresce no ininterrupto diálogo com o Tu divino e pela contínua interiorização
do Evangelho, revivendo em si, enquanto possível a uma criatura, o
relacionamento do esposo Jesus Cristo com o seu Abba, Pai, que vivencia na
dimensão materna, tornando-se cada vez um desses pequenos aos quais pertence o
Reino de Deus. A atitude filial, tão enraizada na mãe das irmãs pobres, não a
impede de manifestar características humanas que são típicas de sua
personalidade. Revela fortaleza de ânimo, clareza de ideia a respeito do
carisma de tal forma que não se deixa perturbar por quem quer que seja unida a
uma capacidade singular de caminhar em frente, em rápida corrida, com passo
ligeiro e pé seguro de modo que os passos nem recolham a poeira, confiante e
alegre (cf. 2Carta a Inês 12-13), como escreverá à
jovem que vive em terras distantes a mesma situação que ela vivera antes no
caminho do seguimento de Jesus, com tenaz perseverança. Tal não se poderia
esperar desta frágil mulher doente, incapaz de levantar-se de seu pobre leito.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM