As mulheres da vida de Jesus
Elas protagonizaram passagens que
definiram o cristianismo, estiveram com ele nas pregações e não o abandonaram
no calvário. Saiba quem foram as representantes do sexo feminino que
acompanharam Cristo em toda sua trajetória
João
Loes
“Cristo
na Casa de Maria e Marta”,
de
Alessandro Allori: as irmãs de Lázaro representam diferentes
modelos
de mulher na nascente comunidade cristã
Os homens dominam a história do
cristianismo. A começar por Deus, o Pai, onipresente e onipotente, criador e
não criadora, passando pelos 12 apóstolos, que não incluíam uma mulher sequer,
e culminando com Jesus, Filho e não filha. Curiosamente, porém, são as mulheres
que não só participaram como protagonizaram boa parte dos momentos cruciais da
vida de Cristo. Da concepção à crucificação, enquanto homens traíam ou fingiam
não conhecer o Messias, elas não se acovardaram diante das dificuldades. Mas
quem são essas mulheres e por que elas são importantes? E como, hoje, as
cristãs batalham para encontrar mais espaço dentro da Igreja?
Com a leitura dos Evangelhos como
relatos simbólicos aliada ao estudo histórico do tempo de Cristo, é possível
resgatar o protagonismo de algumas mulheres na vida de Jesus. “Cada época lê os
Evangelhos de uma maneira”, resume Stephen Binz, biblista formado pelo
Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, e autor do livro “Mulheres nos Evangelhos:
Amigas e Discípulas de Jesus”, a ser publicado nos Estados Unidos em janeiro de
2011. “E as verdades e conclusões tiradas do texto derivam da vida e das
prioridades de quem o lê.”
“A
Noite Sagrada”,
de
Carlo Maratta: Maria muitas vezes não compreendeu a
mensagem
do filho. Mas tinha uma devoção radical por ele
A visão feminina do Novo Testamento
sempre existiu, mas o estudo sistematizado com vistas às revisões do papel da
mulher na vida e no legado de Jesus é mais recente. O que se convencionou chamar
de teologia feminista nasceu com os movimentos pelos direitos das mulheres nos
anos 60, quase dois mil anos depois da reunião dos textos que compõem a segunda
parte da Bíblia. “Prevaleciam, e ainda prevalecem, em muitos lugares
interpretações dos textos que justificavam a subjugação da mulher”, conta Yury
Puello Orozco, teóloga feminista do departamento de Ciências da Religião pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Às perguntas que
buscavam a justificação da existência do mal, por exemplo, convencionou-se
afirmar que a culpa era da mulher, que, na figura de Eva, no Antigo Testamento,
cedeu às tentações do diabo e comeu o fruto da árvore proibida. “Se as mulheres
eram fracas e sugestionáveis como alguns dizem, por que foram elas as
testemunhas de momentos-chave do cristianismo, como a morte e a ressurreição de
Cristo?”, questiona Yury. “Os apóstolos, na hora do aperto, foram incrédulos e
fugiram, enquanto as mulheres permaneceram ao pé da cruz”, lembra.
Uma das que continuaram lá, firme e
forte, foi Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, reconhecida como a figura feminina
mais importante na vida de Cristo. Não só por estar ali, em um dos momentos de
maior aflição do filho que era dela e de Deus, mas por toda sua história ao
lado do Messias. “Ela não foi só mãe carnal, foi mãe moral e psicológica”,
lembra frei Clodovis Boff, teólogo, filósofo e mariólogo com formação pela
Universidade Católica de Leuven, na Bélgica. Segundo Boff, um dos documentos
publicados ao final do Concílio Vaticano II (1962-65), o famoso encontro de
bispos do mundo inteiro que soprou ventos de modernidade na Igreja, sintetiza
bem a natureza excepcional da devoção de Maria. “Diz-se que ela foi uma mulher
que peregrinou na penumbra da fé”, afirma o teólogo. Mesmo sem compreender tudo
que seu filho dizia e fazia, ela acreditou na palavra de Deus e seguiu dando
espaço para que Jesus passasse sua mensagem. “A proposta de Cristo era uma
coisa misteriosa, chocou todo mundo e a ela também, mas ainda assim ela o
acolheu”, explica.
“Verônica
Segura a Mortalha Sagrada”,
de
Simon Vouet: a desconhecida que virou
santa
por ter enxugado o suor de Cristo
São muitos os momentos na vida de Nossa
Senhora que mostram extrema confiança no projeto divino, mas alguns merecem
destaque. Um deles é a anunciação, quando o anjo Gabriel conta a Maria, virgem
e noiva de José, que ela conceberia um bebê mantendo-se casta e que esta
criança, que deveria se chamar Jesus, reinaria para sempre como Filho do
Altíssimo. Diante da grandeza do que foi dito, Maria, embora assustada, aceitou
o anúncio como a vontade de Deus e se colocou à disposição do projeto. É
difícil imaginar o peso que essa mulher aceitou carregar. Jovem, pobre e
prometida em casamento, ela estava grávida em um mundo onde a mulher adúltera –
e essa suspeita recaiu sobre ela – era condenada publicamente à morte por
apedrejamento. “E ela não assume esse papel como uma testemunha passiva da
vontade divina”, lembra Luiz Alexandre Solano Rossi, pós-doutor em teologia e
em história antiga. “Maria vive a missão ativamente e trabalha para que ela dê
certo.”
Para Rossi, a visita de Maria à prima,
também grávida, por intercessão divina, Isabel, no sexto mês de sua gestação, é
exemplo claro da disposição da mãe de Cristo em participar do projeto de Deus e
não apenas acompanhá-lo como espectadora. “É um prenúncio do protagonismo que
ela terá na vida do filho”, afirma. A visita também tem um papel simbólico que
fará de Isabel outra mulher importante na vida de Jesus, embora não se saiba se
eles se conheceram pessoalmente. Foi no encontro com Maria que Isabel confirmou
o projeto de Deus à prima ao anunciá-la como bendita entre as mulheres, além de
bendizer o fruto de seu ventre. Para alguns exegetas bíblicos, estudiosos que
esmiúçam o que diz o livro sagrado católico, a visita tem forte valor
simbólico. Isabel, idosa e estéril, mas grávida de João Batista, representaria
o passado que abre caminho e dá as boas-vindas ao novo, que é Maria, jovem e
grávida de Jesus. “Entre os tradicionais e partidários mais radicais do
judaismo, há quem diga que o Messias, na realidade, seria João Batista e não
Jesus, já que o vínculo com o passado judaico do primeiro é mais forte que o do
segundo”, afirma Rafael Rodrigues da Silva, professor de teologia da PUC-SP.
“Maria
Magdalena”,
de
Giovanni Pietro Rizzoli: a preferida de Jesus, escolhida por
ele
para anunciar a ressurreição, símbolo máximo do cristianismo
As dúvidas sobre o messianismo de Jesus
o acompanharam sempre. Já adulto, durante suas peregrinações, Cristo teve de
lidar inclusive com a desconfiança de homens de seu círculo mais íntimo. Com as
mulheres que também o seguiam, porém, a situação era diferente. Do pouco que se
sabe delas, fica claro que viviam a fé de forma plena. “Elas ajudavam a arcar
com os custos do ministério de Jesus e a tocá-lo adiante sem questionamentos, o
que mostra uma obediência saudável e importante naquele momento”, conta Binz, o
biblista. O autor lembra ainda quão estranho devia ser, na época, ver um
profeta circulando com um grupo de seguidores que incluía um número razoável de
mulheres. Afinal, o gênero feminino, como os estrangeiros, os pobres e os
doentes, vivia à margem da sociedade.
Mas era na margem que Jesus caminhava e
foi lá que ele encontrou outra mulher que seria fundamental em sua vida: Maria
de Magdala, também conhecida como Maria Madalena. Exorcizada por ele de sete
demônios, ela passou a segui-lo e se tornou seu braço-direito no ministério.
Jesus deu inúmeras demonstrações de confiança a Maria Madalena – boa parte registrada
nos evangelhos canônicos e outra contada nos chamados apócrifos, escritos que
datam quase em sua totalidade do século III, mas que não foram incluídos na
“Bíblia”. Ela é chamada de apóstola dos apóstolos, por exemplo, e chega a
despertar ciúmes nos homens que seguem Cristo. A mais poderosa das
demonstrações de confiança do Messias em Madalena, e, por extensão, nas
mulheres, foi o fato de tê-la escolhido para ser a primeira testemunha de sua
ressurreição, o momento definidor da fé católica. Foi ela quem viu e anunciou
aos apóstolos que Jesus havia aparecido a ela ressuscitado.
A predileção de Cristo por Maria Madalena é tamanha
que ela semeou especulações de que ambos teriam se envolvido romanticamente. A
tese foi explorada, virada e revirada nos últimos dois mil anos e certamente
continuará rendendo histórias, como a contada por Dan Brown no best seller “O
Código da Vinci”, de 2003. Em certa medida, a recusa em aceitar que não houve
romance entre os dois mostra que a natureza da mensagem de amor incondicional
não necessariamente romântico de Jesus continua sendo revolucionária e de
difícil compreensão. “A figura de Maria Madalena traz uma crítica aos códigos
de pureza e mostra, na prática, o quanto a mensagem de amor de Jesus é para
todos”, explica o padre Marcio Fabri dos Anjos, doutor em teologia pela
Universidade Gregoriana de Roma.
E cada um vive a devoção à sua maneira. A história
de outras duas mulheres próximas de Jesus na “Bíblia” é exemplo disso. Marta e
Maria, irmãs de Lázaro, têm dois encontros importantes com o Messias. E o
primeiro é representativo das diferentes naturezas que a fé pode ter. Nele, as
mulheres recebem Jesus, que circulava pela região de Betânia, na casa onde
moravam. Ao ver o Messias, Maria abandonou os afazeres domésticos e se sentou
aos pés de Cristo para ouvi-lo. Na tradição de então, sentar aos pés de alguém
é postura clássica do aluno diante do mestre. Já Marta repreendeu a irmã e
Jesus por tê-la deixada sozinha com as obrigações do lar. “Há quem coloque as
duas em oposição – uma certa e outra errada”, explica o teólogo Rossi. “Na
verdade as atitudes se complementam.” Maria representaria a porção
contemplativa da fé, enquanto Marta a prática.
Nem todos, porém, concordam com esse entendimento
do episódio. Os defensores do protagonismo de Maria sobre Marta argumentam, por
exemplo, que, ao se sentar aos pés de Jesus, ela questiona a função feminina,
abandonando as regras que a amarravam aos afazeres domésticos. A outra, alheia
à boa nova, continuaria muito ligada às tradições com as quais Jesus pretendia
quebrar. Ainda assim, dizem os ardorosos defensores de Marta, sobraria uma
função importante para ela. Sendo dela a responsabilidade sobre o lar – e o
lar, na igreja primitiva, era onde a fé cristã era praticada clandestinamente –,
ela surgiria como a grande autoridade do espaço de fé. “Em última instância,
essas mulheres são importantes por que mostram que não existe só um modelo de
mulher na nascente comunidade cristã”, lembra Rossi. “Elas têm liberdade para
escolher o que querem ser.”
“A
Ressurreição de Lázaro”,
de
Andrea Vaccaro: Maria representa a contemplação
e
Marta a prática cristã
Foi esse espírito que fez engrossar a
fileira de mulheres conhecidas e desconhecidas que acompanharam Jesus do início
de sua peregrinação à crucificação. Os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas são
explícitos quanto à numerosa presença feminina na paixão e ao pé da cruz. A
importância delas, aliada ao fato de que muitas não foram identificadas,
alimentou uma verdadeira fábrica de lendas sobre o papel que elas tiveram
nesses momentos definidores. Uma dessas narrativas conta a história de uma
desconhecida que teria enxugado o suor do rosto de Cristo com um pedaço de
tecido no caminho do Calvário. O pano teria ficado marcado com as feições de
Jesus, antecipando o que aconteceria com o manto mortuário, reconhecido
atualmente como Santo Sudário, a principal relíquia católica. Já a tal mulher
desconhecida entrou para a história como Santa Verônica, nome atribuído a ela
por significar “imagem verdadeira”.
Era de se esperar que o Novo Testamento
– cujos principais textos foram redigidos por quatro homens nascidos e criados
em uma cultura eminentemente patriarcal – pouco dissesse sobre as personagens
que foram decisivas na trajetória de Cristo. Pudera, na dura descrição de
Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), filósofo e cronista do tempo de Jesus, as mulheres
estavam à frente apenas dos animais na estrutura social. Mas, contrariando a
lógica de então, os relatos de Mateus, Marcos, Lucas e João, compilados entre
os anos 30 d.C. e 80 d.C., dão enorme importância à presença feminina.
Especula-se que a proximidade temporal da influência de Jesus – que não fazia
distinção entre homens, mulheres, ricos ou pobres –, associada à expectativa
real de que o Messias retornaria em breve a terra para julgar os vivos e os
mortos, povoasse o imaginário dos redatores dos evangelhos.
Com o passar do tempo, porém, o distanciamento das
fontes primárias e a institucionalização da Igreja, o que se viu foi o contínuo
afastar da presença feminina da vida e do legado cristão, de modo a espelhar a
cultura patriarcal de onde ela veio. Um abandono lento, mas persistente do
radicalismo inclusivo pregado por Jesus. “A organização e a hierarquização
acabaram com o pluralismo das primeiras comunidades cristãs”, argumenta Silva,
da PUC.
Mas o legado feminino deixado pelas
mulheres contemporâneas de Jesus tem valor inestimável. Serviu de referência
para o corpo de fiéis que começou a se formar nos primórdios do cristianismo e
nos últimos dois mil anos teve papel fundamental na criação da identidade
católica. O que começou com figuras com Lídia de Tiatira e Tecla de Icônio foi
terminar em Madre Teresa de Calcutá, passando por Santa Teresa D’Ávila e Santa
Juana Inês de la Cruz. Embora as mulheres ainda não gozem do prestígio e
reconhecimento que tinham nos tempos de Cristo, a força das histórias daquelas
que viveram a fé de forma plena, por meio de atos e palavras, deixou sua marca
e continua estimulando mudanças estruturais. “Em pleno século XXI, temos uma igreja
que, no que diz respeito às mulheres, ainda está na Idade Média”, protesta a
teóloga feminista Yury Orozco. Vale ressaltar que os protestantes estão muito
mais evoluídos neste quesito, com bispas ordenadas, inclusive. Que a luta pelo
reconhecimento feminino, que já tem dois mil anos, não precise continuar por
mais dois mil anos. Mas, se for esse o caso, não há nenhum sinal de que as
mulheres vão esmorecer. E isso é ótimo.